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Como você pretende enlouquecer?

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Encontrei esse texto muito legal de Rubem Alves sobre saúde mental! Aqui
ele faz uma ironia sobre o que conhecemos da loucura e sanidade num
texto muito gostoso de ler! Espero que gostem e que reflitam!  O texto é
longo, mas vale a leitura! #enjoy!

“Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me
convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser
um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas
foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu
me explico.

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto
de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros
e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van
Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei.
Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh
matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não
suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma
suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os
vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos. Mas será
que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias
comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes
ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em
ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que
faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a
vela, bastar fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja
o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a
coragem de pensar o que nunca pensou.

Pensar é uma coisa muito perigosa… Não, saúde mental elas não tinham.
Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado
pelos loucos e idosos de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam
a ser os protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que
citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se
fosse pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi falar de
político que tivesse estresse ou depressão. Andam sempre fortes em
passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.

Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso
apresso-me aos devidos esclarecimentos. Nós somos muito parecidos com
computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe,
requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware,
literalmente “equipamento duro”, e a outra denomina-se software,
“equipamento macio”. O hardware é constituído por todas as coisas
sólidas com que o aparelho é feito.

O software é constituído por entidades “espirituais” – símbolos que
formam os programas e são gravados nos disquetes.
Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos
do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O
software é constituído por uma série de programas que ficam gravados
na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na
memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo
“espirituais”, sendo que o programa mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos
no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se
chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e
bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no
software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta
um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos,
somente símbolos podem entrar dentro dele.

Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos.
Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale
de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles
podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até
mesmo psicanalistas.

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma
peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é
sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que
acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas
eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de
som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o hardware, tenham a
capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. Imagine mais,
que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta
de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no
princípio: a música que saía de seu software era tão bonita que seu
hardware não suportou.

Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de
oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca,
saúde mental até o fim dos seus dias. Opte por um software modesto.
Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é perigosa para o
hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente
contra-indicados. Já o rock pode ser tomado à vontade.
Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta
literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do
doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago? Os jornais
têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam
diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica
garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos
domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas
como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal
ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você
se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente,
entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como
eles eram.”

Rubem Alves.
O autor é membro da Academia Campinense de Letras, psicanalista pela
Sociedade Paulista de Psicanálise, professor-emérito da Unicamp e
cidadão-honorário de Campinas, onde recebeu a medalha Carlos Gomes de
contribuição à cultura.

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